Envelhecimento saudável e a distância inacessível das zonas azuis
Por Rodrigo Fonseca Martins Leite
A propaganda é clara e está em todo lugar: imagens de casais de idosos sorrindo, felizes, recompensados pela segurança de uma condição socioeconômica robusta, tendo finalmente tempo para curtir a vida, os netos e novos projetos de vida. De bancos à planos de saúde, passando por agências de viagens, clínicas de estética e aplicativos de relacionamentos, a população idosa é um alvo interessante para inúmeros mercados. Nenhum mal nisso. De fato, há uma parcela de pessoas que usufruem esse status.
Nenhuma novidade também dizer que a grande maioria (quase que absoluta) dos idosos brasileiros não tem a menor perspectiva de tatear estas benesses. O aumento de expectativa de vida também aumentou o número de anos que as pessoas vivem mal acompanhadas por condições degenerativas, crônicas e incapacitantes como os problemas ortopédicos, câncer, depressão, demência e problemas cardiovasculares.
Toda essa carga de doença é parcialmente tamponável e gerenciável pelo acesso a assistência em saúde de boa qualidade. Entretanto, os custos dos procedimentos, tecnologias, medicamentos e intervenções médicas cresce exponencialmente no mundo todo sem a menor perspectiva de reversão. Paralelamente, os preços dos planos de saúde restringem progressivamente mais e mais pessoas à cada ano. Sempre importante ressaltar que o ônus financeiro para que um idoso tenha um plano de saúde de qualidade razoável é enorme e crescente.
Uma narrativa perversa tem se popularizado: se você não é um idoso saudável certamente é porque você não se alimentou de modo saudável, não fez atividade física e não gerenciou bem o estresse. Logo, há uma responsabilização indevida até porque o gerenciamento de fatores de risco, por mais adequado e rigoroso que seja, não descarta a probabilidade de adoecimento por diversas razões.
Até porque existem fatores de doença fora do radar do comportamento individual como a poluição atmosférica, a violência urbana, a ausência de políticas públicas consistentes para idosos e a concentração de agrotóxicos na alimentação.
Os idosos vivem cada vez mais sozinhos no mundo todo. As mudanças sociais romperam os grandes núcleos familiares, enfraqueceram as perspectivas de comunidade e ocuparam os filhos com dois ou três vínculos empregatícios. Fora o individualismo. Desta forma, a logística de inclusão, vigilância e cuidado se precariza. Não é a toa que as taxas de suicídio e problemas com álcool e drogas estão crescendo nessa população.
E a exclusão digital? A revolução tecnológica certamente não incluiu os idosos no seu rol de preocupações. O desafio de gerenciar aplicativos de bancos, senhas, contrassenhas e internet é cada vez mais complexo. Nenhuma iniciativa em relação a dificuldade do idoso por parte das Big Techs, sistema bancário ou absolutamente tudo que demande interação com algum tipo de tecnologia digital. Incluindo aplicativos de saúde. Pasmem.
Nas culturas antigas, o idoso sempre foi considerado um sábio. Alguém que, validado por sua experiência de vida e realizações, sempre tinha algo a dizer e a contribuir. As crianças e adolescentes de hoje abrirão mão dos celulares para ouvir seus avós? O abismo entre gerações nunca foi tão dramático como hoje em dia. No cotidiano, a reclamação dos idosos em relação a tecnologia e o quanto ela nos privou de interações pessoais mais orgânicas é universal.
Neste sentido, as queixas dos idosos se tornam cada vez mais silenciosas e sem eco social. Antidepressivos não serão suficientes para abrandar mais esta exclusão cujo remédio real é política pública e mobilização da sociedade.
Um dos pilares da civilização é a transmissão de valores, legado, informações e história dentro das famílias. Políticas públicas e a sociedade organizada precisam com urgência discutir o lugar do idoso como elo social indissociável no meio da avalanche atual do mundo. Ele é o que une passado, presente e futuro. As taxas de natalidade têm caído no Brasil. Estamos nos tornando um país de idosos pobres, seguridade social insuficiente e menos jovens trabalhando muito -e ganhando mal.
Um documentário recente da Netflix “Como viver até os 100 – Os segredos das zonas azuis” mostram um cenário utópico: regiões pouco urbanizadas do mundo no Japão, Costa Rica e Itália onde a longevidade é acompanhada de qualidade de vida mesmo entre os centenários. Os habitantes destas zonas azuis compartilham alguns fatores como zelo pela família, dieta baseada em vegetais, atividade física moderada, contato com a natureza e estar socialmente e afetivamente ativo. Infelizmente são poucas. E no Brasil, somente existem zonas turvas até o momento.
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*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.
Sobre o autor: Rodrigo Fonseca Martins Leite é médico psiquiatra pelo IPq HCFMUSP, mestre em políticas públicas e serviços de saúde mental, produtor da mídia social “Psiquiatra da Sociedade”.