A sociedade civil diante da crise hídrica
Em tempos de pouca água nos reservatórios, ONGs e movimentos sociais se unem para procurar soluções e cobrar transparência do Governo
Por Josilene Rocha*
O estado de São Paulo vive a pior crise hídrica de sua história. A situação é resultado de uma combinação de fatores, como mudanças climáticas, crescimento populacional, expansão em direção a áreas que deveriam ser preservadas (como as próximas às represas), poluição dos rios, desperdício e falta de planejamento. Em outras palavras: todos têm um pouco de responsbilidade, do Governo ao cidadão comum. Mas, diante da crise, mais do que procurar culpados, é preciso buscar soluções e, neste aspecto, há organizações da sociedade civil desempenhando um papel fundamental.
No segundo semestre de 2014, quando o volume útil do Sistema Cantareira, que abastece mais de seis milhões de pessoas na Grande São Paulo, já havia se esgotado e a primeira cota do volume morto estava em uso, mais de 20 organizações sem fins lucrativos e movimentos sociais se uniram para elaborar propostas que pudessem amenizar a crise no curto prazo e levar a um novo modelo de gestão dos recursos hídricos no longo prazo. A união para discutir medidas se transformou numa coalizão chamada Aliança pela Água, que conta com entidades como Greenpeace, SOS Mata Atlântica e WWF-Brasil.
Quando foi lançada oficialmente, em outubro de 2014, a Aliança apresentou um projeto intitulado Água@SP, com nada menos do que 196 propostas de ação de curto prazo e 191 de longo prazo. Propostas estas elaboradas com a participação de 280 especialistas de 60 municípios.
A partir das 387 possíveis medidas mapeadas, foram escolhidas 20 como prioritárias, 10 de curto prazo e 10 de longo prazo, compondo a chamada agenda mínima. A primeira das de curto prazo era a criação de um comitê de gestão de crise, que deveria ser instalado imediatamente pelo governo paulista, com espaço para participação da sociedade e das prefeituras afetadas pela escassez. Mas o comitê só foi criado em fevereiro de 2015. Tarde demais na opinião de Glauco Kimura de Freitas, coordenador do programa Água para Vida, da WWF-Brasil. “Este comitê deveria ter sido criado lá atrás, quando a Aliança apresentou a proposta. Agora, a vaca já foi para o brejo, a situação é extremamente grave”, diz.
A demora para a instalação do comitê de crise fez com que organizações como a própria WWF-Brasil decidissem não participar dele, para não correrem o risco de ser co-responsabilizadas caso a crise da água evolua para um colapso.
Assim como a proposta da criação do comitê, nenhuma das outras consideradas urgentes foi aplicada de imediato. A quarta delas, por exemplo, era a de que fossem ampliadas as campanhas públicas sobre a falta de água, deixando clara a gravidade da situação e a importância de reduzir o consumo. As campanhas até ocorreram, mas não foram tão claras quanto a coalizão sugeria. Até o início de 2015, não se admitia sequer a existência de um racionamento no Estado – o que esbarra na quinta ação sugerida: a transparência na gestão.
Entre as outras propostas de curto prazo estavam o incentivo à redução do consumo, a aplicação de multa para usos abusivos e a garantia de água em situações de emergência.
Na lista de ações prioritárias de longo prazo, constam propostas como: a transição para um novo modelo de gestão da água, que amplie as ações de recuperação dos mananciais, incorpore a dimensão climática no planejamento e avance no uso racional e reuso da água; que seja executado um plano de redução significativa das perdas de água ao longo da rede, tanto com vazamento quanto com desvios irregulares na distribuição; e a recuperação florestal nas regiões de mananciais.
Apesar de muitas propostas apresentadas não terem sido aplicadas até o momento, a Aliança continua em contato com as autoridades municipais e com o governo, e cada vez promove mais ações por conta própria. A partir agora de fevereiro, a coalizão iniciará uma série de publicações técnicas, eventos, audiências e aulas públicas em diferentes regiões da capital paulista e em outros municípios abastecidos pelo Sistema Cantareira, para incentivar a sociedade a encontrar soluções e a cobrar um gerenciamento de crise adequado por parte do governo. Além disso, mesmo antes do lançamento da Aliança pela Água, muitas das entidades que hoje a compõem já realizavam campanhas para conscientizar as pessoas em relação à crise hídrica.
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A crise como oportunidade
Desde o início da década de 2000, quando a crise hídrica que afeta o país atualmente e, em especial o estado de São Paulo, ainda estava distante, a WWF-Brasil já fazia alertas sobre a necessidade de se reestruturar a gestão dos recursos hídricos e de se incluir na pauta relacionada à água a conservação das florestas. “Nós fomos uma das primeiras instituições a levantarem essa bandeira da água estar atrelada às florestas. Não adianta separar uma coisa da outra”, garante Glauco Kimura de Freitas, coordenador do programa Água para Vida, criado pela organização não governamental em 2001, com o objetivo de criar formas de harmonizar o desenvolvimento social e econômico com a gestão e conservação dos ecossistemas aquáticos.
Apesar dos anos de alertas, nem a gestão foi reestruturada em diversas bacias hidrográficas, nem as florestas foram devidamente preservadas e, somando-se isso às mudanças climáticas, que diminuíram o volume de chuvas, a crise veio. Mas mesmo nela o coordenador do programa Água para Vida consegue ver um lado positivo: “Esta crise pode ser uma grande oportunidade para reforçar a mensagem que nós já vínhamos divulgando há mais de 10 anos. Precisamos recuperar as nascentes e mudar a gestão da água”.
De acordo com Freitas, a crise foi fruto, acima de qualquer coisa, de um “apagão na gestão” dos recursos hídricos. Apagão este que continuou mesmo após a sociedade civil se mobilizar e cobrar das autoridades um posicionamento diante do problema, através de grupos como a Aliança pela Água, do qual a WWF-Brasil faz parte desde o início. Para ele, só a partir deste ano, devido à quase iminência de um colapso, o Governo começou a perceber a gravidade da questão, a reagir diante dela, e isso pode levar a um amadurecimento que evite no futuro outras situações extremas.
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Técnicos em diálogo
Há quase 50 anos atuando pelo saneamento no Brasil, a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, integrante do Conselho Mundial da Água, tem promovido diversos encontros entre especialistas e representantes do poder público para debater a crise hídrica e apresentar soluções.
Em dezembro de 2014, a Seção São Paulo da ABES realizou o seminário ‘A Crise de Escassez Hídrica no Brasil e seu Gerenciamento no Estado de São Paulo’, que gerou um documento com o posicionamento da entidade, além de propostas para o combate à escassez de água, que foram apresentadas à Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos do Estado de São Paulo.
“A crise nos leva a um momento de reorganização e, principalmente, de aprendizagem”, diz Alceu Guérios Bittencourt, presidente da ABES-SP. O país vive crise de escassez hídrica de dimensões inéditas, que atinge um vasto território do Sudeste e do Nordeste brasileiros com forte incidência em São Paulo e afeta os diversos usos da água, revelando conflitos que precisam ser tratados de imediato. Embora não haja precisão das previsões meteorológicas, é provável que seja de grande duração, requerendo estratégias de longo prazo para seu enfrentamento.
Outra iniciativa da entidade é a criação da Câmara Técnica de Recursos Hídricos, que será lançada em março. “A crise hídrica, passou a ser uma questão importante na agenda da sociedade paulista e da brasileira e, claramente, disputa até com a crise econômica a atenção das pessoas”, ressalta Bittencourt.
A ideia é que os temas da nova câmara sejam subdivididos em assuntos subsidiários, que serão conduzidos por intermédio de grupos técnicos específicos: um voltado especificamente para a crise e outros que tratem de questões como o planejamento integrado – uma vez que nós estamos vivendo uma situação em que prevalecem as medidas emergenciais cada vez mais – e os usos múltiplos, com destaque para a relação com o setor elétrico.
*Com colaboração de Ana Paula Rogers
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