Aumenta presença de bactérias resistentes a antibióticos nos hospitais do Brasil
No Brasil, foram 33,2 mil mortes (cerca de 90 por dia) diretamente causadas por infecções resistentes e 138 mil nas quais as superbactérias tiveram alguma participação. Estudo aponta que grupos mais afetados estão nos extremos da pirâmide etária, sendo os bebês de até 1 mês de vida e as pessoas com mais de 65 anos
A disseminação de bactérias e outros microrganismos resistentes a quase todos os antimicrobianos disponíveis é um pesadelo mundial. Ela ocorre desde que os primeiros antibióticos começaram a ser usados e avança rapidamente, tirando o sono dos especialistas por representar uma ameaça a uma das maiores conquistas da medicina moderna: a capacidade de debelar infecções. Sem antibióticos eficientes, fica quase impossível realizar cirurgias, transplantes e tratamentos quimioterápicos contra o câncer em segurança. Problemas comuns, como um corte mais profundo ou uma infecção respiratória, podem se tornar uma ameaça à vida.
“Poucas intervenções aumentaram tanto a longevidade humana quanto a oferta de água tratada e o desenvolvimento de vacinas e antibióticos”, conta o infectologista Arnaldo Lopes Colombo, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que coordena o Instituto Paulista de Resistência aos Antimicrobianos, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP. Algumas estimativas indicam que o uso de antibacterianos para tratar infecções aumentou a longevidade humana em cerca de 20 anos.
As bactérias estão em todos os lugares: na água, no solo, no ar e nas superfícies, inclusive do nosso corpo. Com o uso intensivo de antibióticos na saúde humana e na produção de alimentos, para proteger ou tratar os animais de criação de doenças e induzir ganho de peso, as bactérias são continuamente expostas a esses fármacos. Esse contato favorece a seleção das variedades resistentes.
“Estamos vendo surgir bactérias contra as quais não há mais medicamentos eficazes”, relata a infectologista brasileira Fernanda Lessa, chefe do programa internacional de controle de infecções dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos. Ela coordenou um suplemento especial sobre o assunto, publicado em julho de 2023 na revista Clinical Infectious Diseases, e afirma: “Por sorte as infecções causadas por esses microrganismos ainda são relativamente raras na comunidade e estão quase sempre restritas aos hospitais”
Mesmo assim, as infecções por bactérias resistentes a múltiplos medicamentos – também chamadas de multirresistentes ou superbactérias – causam um estrago enorme. Um levantamento coordenado pelo epidemiologista Ramanan Laxminarayan, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, estimou que, a cada ano, no mundo, ocorram 136 milhões de casos de infecção hospitalar causados por esses microrganismos. Segundo os dados, publicados em junho de 2023 na revista PLOS Medicine, a China é, de longe, a nação mais afetada, com 52 milhões de registros. O Brasil aparece em quinto lugar, com 4 milhões de casos.
No mundo todo, esses microrganismos foram os responsáveis diretos por 1,27 milhão de mortes em 2019. Quando se incluem os casos em que o indivíduo tinha outra doença além da infecção, esse número sobe para 4,95 milhões, próximo ao total de óbitos registrados em três anos de pandemia de Covid-19 e bem superior à soma das mortes anuais por malária, Aids e tuberculose.
Seis espécies de superbactérias foram responsáveis por ao menos 70% das mortes: Escherichia coli, Staphylococcus aureus, Klebsiella pneumoniae, Streptococcus pneumoniae, Acinetobacter baumannii e Pseudomonas aeruginosa. Todas integram a lista de patógenos prioritários, publicada em 2017 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), contra os quais é preciso desenvolver novos antibióticos.
Com 14% da população mundial, os 35 países das Américas concentram aproximadamente 11% das mortes por infecções bacterianas resistentes a antibióticos. Foram 141 mil óbitos diretamente provocados por esses microrganismos e 569 mil associados a eles em 2019, segundo estudo publicado em agosto de 2023 na revista The Lancet Regional Health – Americas. Novamente, a grande maioria (80%) foi causada pelos seis patógenos. As ocorrências, em números absolutos, estão concentradas nas nações mais populosas: Brasil e EUA.
No Brasil, foram 33,2 mil mortes (cerca de 90 por dia) diretamente causadas por infecções resistentes e 138 mil nas quais as superbactérias tiveram alguma participação. “Os grupos mais afetados estão nos extremos da pirâmide etária da nossa população, os bebês de até 1 mês de vida e as pessoas com mais de 65 anos”, conta o pediatra Eitan Berezin, da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, um dos autores do estudo.
“Suspeito que hoje o número de mortes no Brasil e no mundo seja ainda mais elevado”, relatou Lessa, do CDC, em entrevista por videochamada em setembro. “Esses estudos usaram dados de 2019 e na pandemia de Covid-19 aumentou o consumo de antibióticos”, disse.
No Brasil, essa tendência foi observada pelo infectologista Carlos Kiffer, da Unifesp, e colaboradores da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Eles analisaram os dados provenientes de testes genéticos de mais de 80 mil amostras de bactérias coletadas em hospitais de quase todo o país de 2017 a 2022 e constataram que, na pandemia, houve um aumento significativo (de 4 a 21 pontos percentuais) na frequência de genes que conferem a oito espécies de bactérias resistência aos carbapenêmicos, antibióticos considerados o último recurso para tratar infecções hospitalares graves.
Klebsiella pneumoniae, Escherichia coli e Acinetobacter baumannii estavam entre os principais microrganismos, segundo o trabalho, publicado em julho na Clinical Infectious Diseases. “Havia evidências pontuais de que alguns desses genes estavam se tornando mais comuns no país. Ajudamos a dimensionar o problema”, conta Kiffer.
Água da torneira, de riachos e do esgoto comum e hospitalar estão sendo coletadas e levadas a um laboratório na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP para verificar a presença de bactérias resistentes a antibióticos. O trabalho é parte de um projeto internacional, coordenado no Brasil pela infectologista Anna Sara Levin, da FM-USP, que se destina a avaliar se a prescrição e o uso adequado desses medicamentos podem reduzir o surgimento e a dispersão de microrganismos contra os quais os antibióticos não produzem mais o efeito desejado.
Para a infectologista Anna Levin, da USP, coordenadora do projeto de rastreamento, a ocorrência de infecções hospitalares por bactérias resistentes é um reflexo da qualidade do atendimento. “Quando o sistema está no limite, com excesso de pacientes e poucos profissionais para atender, as taxas de infecção aumentam”, afirma a pesquisadora, que preside a comissão de controle de infecção do Hospital das Clínicas da USP, o maior complexo de saúde do país. Durante a pandemia, o grupo de Levin conseguiu controlar a disseminação de infecções por bactérias multirresistentes no pronto-socorro do hospital ao submeter as pessoas que eram internadas a testes de detecção dos patógenos e isolar aquelas colonizadas, tratando-as separadamente.
Embora a resistência a antibióticos seja um problema antigo, só recentemente o mundo passou a prestar atenção a ele, por causa de dois documentos: um relatório de 2014 da OMS, que mostrou que o fenômeno estava disseminado pelo planeta, e um estudo conduzido pelo economista James O’Neill, a pedido do governo do Reino Unido, que projetou um cenário catastrófico para 2050. Se nada for feito, as infecções resistentes aos antibióticos deverão causar 10 milhões de mortes por ano na metade do século e provocar perdas na economia que podem chegar a US$ 100 trilhões.
Fonte: Revista Pesquisa FAPESP