Livro resgata protagonismo negro de figuras pouco conhecidas da História
A ‘Enciclopédia negra’ destaca por meio de verbetes e imagens as diversas formas de resistência da população negra ao longo da História
Por: Mariana Lima
A maioria dos 550 personagens da ‘Enciclopédia negra’ não costuma frequentar as páginas heroicas da História. Eles não pegaram em armas, não criaram leis ou publicaram livros. A maioria não teve um retrato de seu rosto.
Contudo, tiveram aquilo que os autores da enciclopédia, Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz, definem como “protagonismo do cotidiano”.
As trajetórias narradas nos 417 verbetes do livro jogam uma nova luz sobre as diversas formas de resistência da população negra, tanto durante quanto depois da escravidão.
Além dos verbetes, os personagens retratados também inspiraram um caderno de imagens com retratos produzidos por 36 artistas negros contemporâneos de diferentes regiões do país, como Antonio Obá, Arjan Martins e Castiel Vitorino.
O livro resgata figuras que desafiaram o racismo estrutural e, na maioria das vezes, pagaram caro por isso. Entre eles, Agostinho Pereira, chamado de “Lutero Negro” por um naturalista inglês, que reuniu centenas de seguidores pregando pela autonomia política dos negros.
Ex-militar e crítico da igreja, dizia que Jesus não era branco e sim “acaboclado” muito antes de as atuais reconstituições computadorizadas lhe darem razão. Foi condenado a três anos de prisão.
Juntam-se a ele ao longo da obra nomes como Luiza Pinta, perseguida por suas “operações supersticiosas”, e Euzébio de Queiroz Coutinho Barcelos (1848-1928), raro médico negro de sua época, que sofreu acusações de cunho racista da imprensa de Pelotas, chamando de feitiçaria e charlatanismo os rituais do catolicismo popular que realizava.
Já a história da cativa Francelina, que juntou recursos e conseguiu libertar a filha recém-nascida, mostra como a ameaça de reescravização rondava a população negra.
Dez anos depois, o proprietário de Francelina contestou a alforria sob alegação de “incapacidade da mulher”. Disse ele que uma “mulher casada” não tinha condição de “conceder liberdade a um escravo do casal”.
A enciclopédia joga luz sobre grandes figuras esquecidas, como José Ezelino da Costa (1889-1952), que desenvolveu um estilo próprio de fotografia e fez fama como o “primeiro fotógrafo negro do sertão do Seridó”; e o palhaço Benjamim de Oliveira, que viveu na miséria, mas teve reconhecimento suficiente a ponto de jornalistas pressionarem deputados para que ele recebesse uma pensão do governo.
Vale pontuar que a obra consegue colocar em xeque a ideia de que os escravizados do país não se comunicavam com o resto do mundo.
A história de um dos líderes da insurreição de Viana, Daniel Araújo, mostra que nas senzalas do Maranhão se tinha conhecimento da Guerra Civil nos EUA. Nos portos, marinheiros africanos e brasileiros trocavam ideias sobre as revoltas em outros países.
Fonte: O Globo