Reflexões: o julgamento Mariana Ferrer e a visão cultural da mulher
Por Cristiane Jatene
No dia 3 de novembro de 2020, assisti, estarrecida, a um julgamento feito por videoconferência. O julgamento causou comoção nacional porque a vítima é quem foi julgada.
Ela acusa um homem de tê-la estuprado. O advogado dele, de posse de fotos sensuais da vítima, a acusa por trabalhar mostrando seu corpo na internet.
Não conheço o processo. O que deveria ser julgado é se houve ou não estupro. O que o julgamento mostrou foi a indignação do advogado como que ao indagar: “como uma mulher que vive de tirar fotos sensuais e se expor na internet pode acusar alguém de estuprá-la?”. Tirar fotos sensuais seria aval para ser violada?
Havia mais três homens na videoconferência. Imóveis. Um deles perguntou se ela queria uma água. Depois soube que era o juiz. Ela respondeu que queria ser tratada com respeito e que se ativessem aos autos.
Não houve defesa do Direito, da Lei, da Dignidade Humana e nem daquela mulher.
A primeira vez que me incomodou o fato de o valor da mulher ser seu corpo (objetificado) e a diferença entre homens e mulheres foi aos 8 anos de idade. Perguntei ao meu irmão, de 18 anos, por que existiam revistas de mulheres peladas? E por que existiam de mulheres e não de homens?
Sempre digo aos pais e aos responsáveis: prestem atenção ao que a criança está tentando contar sobre ela, nas perguntas, nos desenhos, nas histórias favoritas. Sempre informo aos adultos que dizem que “as mães são especialistas nos filhos”, que as crianças são especialistas nos seus pais, responsáveis e todos os adultos próximos. A diferença? Elas ainda não são capazes do mesmo grau de simbolização dos adultos. Mas, veem tudo, entendem tudo, expressam tudo. Fiquem atentos.
Ao meu ver, o pior que pode acontecer ao ser humano, individualmente ou como agrupamento, comunidade, é naturalizar o que é cultural. Infelizmente, a Medicina, ao longo da História se presta a fazê-lo, em diversos momentos. Quem nunca ouviu algum psiquiatra dizer que “o homem se perde pela visão” e “a mulher pelo ouvido”? Qual mulher heterossexual gosta de homem mal cheiroso, descuidado? Qual homem heterossexual gosta de mulher que fala errado, sem assunto, ignorante? Percebe o que é criar uma cultura e transformá-la em “natural”, ou seja, sem possibilidade de ser mudada, pois que seria inerente à condição humana, em qualquer tempo e lugar?
Objetificar e se tornar objeto é um longo aprendizado. Quem já não ouviu que mulheres se sentem mais seguras quando estão usando lingeries bonitas, mesmo que somente elas vejam? Todo produto fica mais valorizado se bem embalado, não é mesmo?
Fui uma criança livre. Vivia descalça e ia na praia sem a parte de cima. Brinquei muito. E a corporeidade livre era fundamental.
Que felicidade ter aproveitado ter um corpo livre e ter vivido com adultos que me mantiveram sempre em segurança, permitindo a mim ser criança.
Que felicidade ter aproveitado, porque nunca mais seria igual. Fiquei menstruada um mês antes de fazer dez anos. Aos onze eu já teria corpo de mulher e aos doze eu já estava aprendendo a esconder meu corpo, porque passei a ser olhada de uma forma que ainda nem entendia a razão.
Na adolescência, enquanto estudava História, Filosofia, Psicologia, conhecia os principais autores das Ciências Humanas, os principais artistas, “tinha” que me preocupar com os temas: corpo, esconder o corpo, segurança nas ruas etc. Será que algum colega homem da escola tinha essas questões? Será que esta diferença gritante é natural? Claro que não, para as duas questões.
O jornalista e escritor norte-americano Gay Talese, um dos meus autores favoritos, dentre suas obras-primas, escreveu ‘A mulher do próximo’, editado no Brasil pela Companhia das Letras. Ele mostra como houve o crescimento concomitante do puritanismo defendido pelo neopentecostalismo, religião Protestante (ou Evangélica) e da indústria da pornografia, recém-criada.
O que há de natural no ser humano é a fome, a sede, o tesão, a necessidade de dormir e fazer as chamadas “necessidades básicas”. Como e o que vai comer, como e o que vai beber, como e com quem vai fazer sexo etc. é cultural. Construído, aprendido, passado de geração em geração, transformado por outras culturas. Ou seja, por exemplo, a mulher ter que vir bem “embaladinha”, em lingeries consideradas “sensuais”, para seduzir “o homem que se excita pelo olhar” é cultural, construído, aprendido e passado adiante.
Cada cultura desenvolve um tipo de culinária, um tipo de sexualidade, um tipo de transporte, de moradia. Tudo mutável, cultural e construído. Mas, não há como escapar da cultura ou das culturas nas quais vivemos, estamos inseridos e ali somos forjados. Para isso, é necessário um longo trabalho de conscientização.
Quem nunca ouviu que a mulher ter a possibilidade de seduzir pela sua aparência é um poder? Muitas vezes fui cobrada por me negar a usar minha aparência ou a atratividade do meu corpo para conseguir alguma coisa que posso conseguir com minha inteligência. Por outras mulheres. O que essa visão esconde? Primeiro, que todas as relações são de poder. Estamos em guerra, com os homens que, em tese, gostaríamos de conquistar e com as mulheres, que seriam nossas concorrentes.
Numa época de Carnaval, vi numa das TVs Educativas uma socióloga questionar o modo como uma passista de Escola de Samba se colocava e o homem ao seu lado disse que ela estava dizendo aquilo porque ela não podia usar aquele biquíni, não tinha corpo para isso.
Há onze anos, fiz uma pesquisa de forma muito dedicada, ficou realmente excelente, original, tanto que tirei nota dez unânime da banca. Durante o processo, meu orientador enviou por e-mail uma devolutiva do trabalho e quando recebi estava indo almoçar com um amigo. Fui empolgada mostrar a devolutiva. Ele leu, elogiou e, “em tom de brincadeira”, perguntou: “Esse cara não está te comendo não, né?”. Não, “o cara não estava me ‘comendo’”.
Esse tipo de interpelação pode ser feito por ativistas. Certa vez, fui a um show de jazz de um amigo e ele me apresentou um dos músicos. Soube que ele tinha uma banda de jazz, estilo que adoro. Chegando em casa, o adicionei no Facebook para saber dos shows. Ele veio falar comigo. No decorrer da conversa, ele viu que eu não queria nada, além de ir aos shows. Eis que um dia me pergunta: “Mas, você gosta de ser desejada, né? Aquela foto de bata branca, aquele sorriso…”.
Ele se referia a uma foto de um Natal, tirada por uma das minhas sobrinhas, que tinha doze anos. Eu estava rindo com minhas sobrinhas e ela clicou. Elas gostavam dessa foto porque, segundo elas, eu estava “rindo de verdade”. Pois, esse homem, preto, músico, mais jovem que eu, ativista, viu nessa foto um desejo meu de ser desejada. Como se sentir livre nessa cultura?
Sou frontalmente contra objetificar meu corpo, mas eu não tenho outro corpo. Meu corpo é de mulher. E foi dito que se eu mostrar esse corpo numa roupa de calor, num dia de 40 graus, é porque quero ser desejada. Num país onde os homens andam sem camisas sem serem acusados de nada.
Passei por muitos problemas com alimentação e corporeidade ao longo da vida e me tornei especialista em ambos os assuntos (alimentação, imagem e seus transtornos) através de muito estudo.
Certa vez, fui numa exposição sobre Fellini. Era verão. Eu estava com uma sandália rasteira, uma calça jeans uma blusa de alças, justa. Adoro a arquitetura do Sesc Pinheiros. E minha amiga tirou uma foto minha de corpo inteiro, sorrindo, em movimento, numa parte do prédio muito bonita. Gostei da foto e publiquei. Em seguida perguntei a um dos meus irmãos se parecia que eu queria exibir meu corpo, se era melhor apagar a publicação. Ele me olhou espantado e disse: “Não parece”. E perguntou: “O que você poderia fazer? Você tem esse corpo. Usar uma burca?”
As primeiras mulheres que vi falarem sobre o inferno que é ter que estar atenta a esses temas foram a jornalista Sandra Coutinho e a atriz Isabella Rossellini. Sandra disse que desde adolescente tinha medo de andar nas ruas do Brasil porque nunca sabemos se aqueles absurdos que somos obrigadas a ouvir podem virar uma intimidação mais séria. Isabella disse que era um alívio envelhecer e sua aparência deixar de chamar tanto a atenção dos homens.
Em qual tipo de sociedade uma mulher pode viver de mostrar seu corpo? Numa sociedade que valoriza o corpo da mulher como produto?
Lembro que a atriz Maria Padilha aceitou posar nua para montar uma peça de teatro. Ela foi admirada e o Brasil criticado. Ela se posicionou questionando por que a atitude era nobre por mostrar a dificuldade de se fazer arte no Brasil e a atitude da mulher que fazia o mesmo pra sobreviver era indigna?
As questões permanecem, anos depois.
De onde alguém pode deduzir que tirar fotos sensuais é autorização para que quem quiser possa ter acesso ao seu corpo e a sua sexualidade? Não há essa ligação. As fotos podem ser públicas, mas o corpo e a sexualidade são privados. Uma das lições básicas de Educação Sexual é ensinar as crianças que o corpo delas pertence a elas e ninguém pode ter acesso.
O estupro não é sexo consentido e qualquer tipo de contato sem consentimento é violação. Uma prostituta, que vende seu corpo, tem o direito de dizer não a qualquer relação sexual. Toda mulher tem esse direito.
O estupro quase nunca tem testemunha. Qual palavra vale mais, numa sociedade que objetifica a mulher? A do homem que pode andar sem camisa livremente ou a da mulher que se sorrir numa foto está sorrindo porque quer ser desejada?
Tudo isso que foi construído pode ser desconstruído e no lugar podemos construir uma cultura de respeito e igualdade, na qual homens e mulheres possam ter sua forma física natural sem que seus corpos sejam objetificados e sexualizados o tempo todo. Sem que os homens tenham que se comportar como cães sempre abandando o rabo para as mulheres e sem que as mulheres tenham que ser produto. Precisaríamos do engajamento de todos.
A internet nos assola com imagens da vida real, que não tínhamos acesso antes. Imagens de terror. Vi um homem chutar a barriga de sua esposa, grávida de oito meses.
Acho urgente resgatarmos os valores civilizatórios e humanitários, que tomaram o mundo após a segunda guerra, que hoje servem como xingamentos para dizer que alguém que os defende é de esquerda.
Do mesmo modo que agradeci aos adultos que me permitiram ser criança, agradeço aos poucos namorados e aos amigos que sempre me permitiram me relacionar como um ser integral e não como objeto. Porque, nenhuma de nós, nem nuas numa foto pública, somos objeto e nosso corpo nunca será publico. Embora, seja ensinado há décadas o contrário. Vamos evoluir?
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Sobre a autora:
Cristiane Jatene é psicóloga e historiadora, clinica em São Paulo no seu consultório particular, onde atende indivíduos, casais e famílias. Com sua obra ‘Baralho de Palavras’, criada diariamente por um ano, quando escreveu uma palavra por dia, ministra as ‘Oficinas Autobiográficas’ para grupos no Brasil e em Portugal. Atualmente, tem feito os atendimentos clínicos online, bem como a ‘Roda de Conversa Virtual Luso-Brasileira’, criada durante a pandemia.
Artigo publicado originalmente no Medium e cedido para a campanha Observatório em Movimento.