Trabalho Escravo Contemporâneo: o que é e como combater
Entenda o que é trabalho escravo contemporâneo, a situação atual do Brasil e como é possível combater o problema
Por: Juliana Lima
O Brasil tem, em sua memória coletiva, uma imagem muito forte marcada pela escravidão dos povos indígenas e africanos durante os períodos colonial e imperial. Para muitos, esse pode ser um problema antigo que já foi completamente resolvido, mas o trabalho escravo continua existindo e fazendo milhares de vítimas todos os anos, só que agora com novas características.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), há cerca de 40 milhões de pessoas sendo submetidas ao trabalho escravo contemporâneo em todo o mundo, sendo que 70% são mulheres e meninas. No segundo artigo de sua Convenção sobre Trabalho Forçado, número 29, a OIT define trabalho escravo como “qualquer trabalho ou serviço requerido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual esse indivíduo não seja voluntário”.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 proíbe em seu artigo 5 a pena de “trabalhos forçados”. Já no artigo 243, por meio de uma Emenda Constitucional de 2014, fica definido que toda e qualquer propriedade rural e urbana que for flagrada explorando trabalho escravo deve ser expropriada e destinada à reforma agrária ou a programas de habitação popular.
É no Código Penal brasileiro, no entanto, onde se encontra a definição legal exata para o trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Segundo a redação atual, que foi escrita por meio de uma alteração legislativa de 2003, é crime:
“[Art. 149.] Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência”.
Para os crimes praticados contra crianças e adolescentes ou motivados por discriminação de raça, cor, etnia, religião ou origem, a pena é aumentada pela metade.
Uma das principais características da definição brasileira é que ela aponta várias situações que podem se configurar como trabalho escravo, sendo que a existência de apenas um dos elementos já é suficiente para criminalizar o praticante. O trabalho escravo contemporâneo acontece, então, quando:
- Há trabalho forçado: o trabalhador não tem a possibilidade de deixar a situação seja por isolamento geográfico, ameaças, violência física ou psicológica, fraudes ou por apreensão de seus documentos;
- Há jornadas exaustivas: o trabalhador é submetido a esforços excessivos que causam danos a sua integridade física e a sua saúde, não se tratando apenas de quantidade de horas trabalhadas;
- Há servidão por dívidas: o trabalhador é forçado a trabalhar para pagar um débito que adquiriu com o empregador, muitas vezes de forma ilegal, como quando há cobrança de preços abusivos sobre a alimentação e moradia do trabalhador;
- Há condições degradantes: há elementos no local de trabalho ou de permanência do trabalhador que atentem contra a dignidade humana, como maus-tratos, má alimentação e higiene, falta de assistência médica etc.
Por ter definição abrangente, a lei de combate ao trabalho escravo brasileira é considerada uma das mais completas do mundo. No entanto, movimentos políticos e ideológicos já tentaram, mais de uma vez, propor alterações na lei. O próprio presidente Jair Bolsonaro (PL) já gerou polêmicas ao defender, em 2019, uma mudança na definição de “trabalho escravo” e “trabalho análogo ao escravo”, alegando que a abrangência da definição atual prejudica empregadores.
Juridicamente, o único termo reconhecido atualmente no Brasil é “trabalho análogo ao escravo”, já que há uma tentativa de se distanciar do trabalho escravo histórico, aquele que era permitido e incentivado pelo Estado brasileiro e que foi abolido em 1888. Por isso, na prática, é usado o termo “trabalho escravo contemporâneo” como sinônimo de situação análoga à escravidão.
Para ativistas e legisladores, as tentativas de mudanças na definição atual têm pouco embasamento, sendo muito ligadas a tentativas de proteger empregadores que lucram com o trabalho escravo contemporâneo e incentivar o crime.
O trabalho escravo contemporâneo no Brasil
Segundo o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, de 1995 a 2020, foram encontradas 55.712 pessoas em situação análoga à de escravo no país. Já em 2021, de acordo com a Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTP, 1.105 trabalhadores foram retirados do trabalho escravo em cerca de 234 operações de resgate.
A maior parte dos resgates acontece nas áreas rurais, sendo que a pecuária, com a criação de bovinos, é o setor que mais utiliza mão de obra escravizada. Segundo a Comissão Pastoral da Terra, o setor corresponde a 23% dos casos de trabalho escravo contemporâneo no campo. Logo depois, aparecem as lavouras permanentes e temporárias, com destaque para a produção de cana-de-açúcar, café e arroz.
Na área urbana, a construção civil é uma das maiores exploradoras de trabalho escravo, além da produção têxtil e de confecção. Nessa última, a mão de obra é formada por uma parcela significativa de mulheres e de imigrantes, principalmente de pessoas oriundas de outros países da América do Sul, como Bolívia, Peru e Paraguai.
Quanto ao perfil geral de quem é escravizado hoje no Brasil, dados apontam que a maioria é homem (cerca de 95%), jovem (a faixa etária com o maior número de resgatados é a de pessoas entre 18 a 24 anos), de baixa escolaridade (30% dos resgatados são analfabetos e 37% possuem só o 5º ano do ensino fundamental completo), e negra.
Entre 2003 e 2020, 45% dos resgatados do trabalho escravo se disseram pardos, mulatos, caboclos, cafuzos ou mamelucos, 23% se autodeclararam brancos, 16% amarelos (de origem japonesa, chinesa, coreana etc.) e 13% pretos. Para diversos estudiosos e especialistas no assunto, o perfil do trabalho escravo contemporâneo no Brasil é justamente aquele das populações mais vulnerabilizadas socialmente no país, ou seja, negros, pobres, sem escolaridade e imigrantes.
Combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil
O cenário do combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil começa em 1995, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso admitiu, pela primeira vez, perante a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a existência do problema no país. Foi então que as primeiras equipes de fiscalização e resgate foram criadas, conhecidas atualmente como Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM).
O grupo responde ao Ministério do Trabalho e Previdência (MTP), e é formado por auditores-fiscais do Trabalho, agentes do Ministério Público do Trabalho, da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União, entre outras instituições.
Além disso, a depender das fiscalizações, que acontecem sempre a partir de denúncias, outros órgãos públicos podem atuar junto ao GEFM, como por exemplo, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
A legislação brasileira de combate ao trabalho escravo contemporâneo passou a ganhar forma em 2003, quando foi lançado o primeiro Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo e criou-se a Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), órgão formado por agentes governamentais, entidades não governamentais e membros da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e dos Ministérios Públicos na condição de observadores. Atualmente, a Conatrae é a responsável pelas ações de combate ao trabalho escravo no Brasil.
Em 2008, foi aprovado o segundo Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, que garantiu melhorias nas ações de combate, como na destinação orçamentária, estando vigente até os dias de hoje. A lei garante que o resgatado de trabalho escravo ganhe o pagamento de salário atrasados e de direitos trabalhistas, além de seguro desemprego por três meses e ainda possa processar o empregador por danos morais.
Também é comum que o resgatado seja inserido em programas sociais. No entanto, segundo especialistas e fiscais, é importante haver um acompanhamento desses trabalhadores, que, muitas vezes, acabam voltando ao trabalho escravo devido a sua vulnerabilidade social e a dificuldade de se reinserir na sociedade com melhores condições de vida.
Para quem utiliza mão de obra escravizada, por outro lado, é necessário pagar multa de acordo com a gravidade do crime, sendo possível se defender em até duas instâncias na justiça. Além disso, o empregador passa a integrar a “Lista Suja do Trabalho Escravo”, considerada a característica mais forte e eficaz da legislação brasileira no combate ao trabalho escravo contemporâneo.
A lista foi criada ainda em 2003 e inclui os empregadores, sejam pessoas físicas ou jurídicas, que foram flagrados e indiciados por explorar mão de obra escrava. O autuado permanece na lista por dois anos, mas pode firmar um acordo com o governo para ser retirado do cadastro desde que se comprometa a uma série de exigências trabalhistas e sociais.
Apesar de não impor obrigatoriamente sanções comerciais ou financeiras, a lista serve como uma denúncia para consumidores, investidores e parceiros comerciais. Por isso, muitas empresas brasileiras e internacionais encaram a Lista Suja do Trabalho Escravo como uma importante ferramenta de gerenciamento de risco, já que a presença no cadastro representa risco comercial grave na sociedade atual.
Atualizada semestralmente, a lista continha 79 empregadores na versão publicada ao fim de 2021. Entre eles, havia nomes de um procurador da Justiça aposentado no Pará, o ex-prefeito da cidade de Camacho, em Minas Gerais, e uma empresa subcontratada para prestar serviços na construção do hospital da rede Unimed em Betim, também no estado mineiro.
Denúncias de trabalho escravo contemporâneo
O trabalho escravo contemporâneo ainda é um problema grave no Brasil e no mundo. Segundo organizações e especialistas no assunto, para erradicá-lo completamente da sociedade, é preciso fazer com que ele não seja mais lucrativo para empresas e empregadores em geral. Por isso, ações como a Lista Suja (que revela nomes de empresas condenadas por trabalho escravo) são fundamentais.
Outro ponto ressaltado é a educação e conscientização da sociedade civil perante o tema. Atualmente, diversas empresas checam suas cadeias de produção, cada vez mais pulverizadas, para saber se há utilização de mão de obra escrava, e a população tem o poder de tornar isso uma regra. Além disso, as denúncias são fundamentais, já que são elas que tornam as fiscalizações possíveis. Hoje, o Brasil possui vários canais de denúncia de trabalho escravo, que inclusive aceitam denúncias anônimas.
O principal canal de denúncia é o Disque 100, para denúncias por telefone. Já a Divisão de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério da Economia (Detrae) possui o Sistema Ipê, que permite denúncias via formulário online. Além disso, é possível denunciar perante o Ministério Público do Trabalho (MPT) e procuradorias regionais, seja presencialmente ou online. O MPT também possui um aplicativo de denúncias disponível para Android e iOS chamado MPT Pardal.
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