Como as ONGs podem aprimorar sua gestão de pessoas aprendendo com o setor privado
Por Edmond Sakai
Após duas décadas atuando no Terceiro Setor nos EUA e Brasil, pude ver e vivenciar a evolução deste universo, em especial o gradativo aumento no nível de profissionalização e capacitação das pessoas que trabalham na área. Se houve um tempo em que o voluntarismo – no pior sentido do termo – era a norma, ela definitivamente já está no passado.
Muito se diz que o Terceiro Setor exige um “chamado”, ou esse termo tão vago, “vocação”. Não sei se concordo inteiramente. É claro que a exigência básica para qualquer um que queira atuar em uma entidade da sociedade civil é a vontade de ajudar o próximo e construir um mundo melhor para todos. Mas se só a vontade bastasse, provavelmente todos os nossos graves problemas sociais, ambientais e econômicos já estariam resolvidos. Além da vontade, é preciso ter competência.
O bom é que competência pode ser desenvolvida. A profissionalização do setor passa pelo aumento da oferta de educação e capacitação profissional focada no Terceiro Setor, e da boa gestão de pessoas dentro das ONGs. Isto faz toda a diferença. E as organizações da sociedade civil já há algum tempo vêm atraindo grandes talentos, não devendo nada às empresas do setor privado.
Eu inclusive encontro muitos profissionais do Segundo Setor querendo fazer a migração para o Terceiro. Foi o que fiz, então entendo o porquê. Assim como eu, eles querem ter um propósito de vida. O que é isso? Talvez seja brega, mas é o que é: servir a humanidade. Eu acho muito gratificante: ajudar uma causa e ser remunerado para fazer o bem. Claro, você não ficará milionário (terá sim conforto), mas terá uma carreira que pode te trazer aquela sensação de ter ajudado a mitigar as mazelas, sejam sociais, ambientais ou econômicas, quando deitar a cabeça no travesseiro.
Sempre disse aos meus alunos – esta geração que é mais engajada/crítica na busca por uma sociedade mais justa – que o Terceiro Setor é uma grande oportunidade. Em ONGs internacionais ou entidades nacionais consolidadas do país, a chance de se encontrar cada vez mais um plano de carreira e salários competitivos principalmente em posições sêniores, quando comparada com a média geral do Segundo Setor, é grande. Nos EUA, pensa-se que é a área de tecnologia (por exemplo, o Vale do Silício) que mais emprega. Não é verdade. É o pujante Terceiro Setor, que é super profissional. Um dia, talvez em um futuro nem tão distante, o Brasil chegará a este nível. Afinal de contas, como vemos, a pandemia acentuou a “prática do bem” via mais doações individuais/empresariais e trabalho voluntário.
Profissionais de captação são os mais procurados
Mas quais perfis profissionais são buscados pelo Terceiro Setor? Basicamente, as ONGs precisam de pessoal com visão estratégica e operacional, ou seja, quem pensa as ações e quem coloca a mão na massa. Ambos são fundamentais e se complementam. Muitas ONGs com ótima estratégia pecam no operacional e assim entregam menos resultado do que poderiam, ou são ótimas em fazer acontecer, mas sem objetivos bem definidos também provocam menor impacto.
Um profissional muito valorizado – sob o ponto de vista de mobilidade dentro do Setor e de salário – é aquele que conhece sobre a captação de recursos. Não é à toa que em um programa de mestrado sobre administração do Terceiro Setor em qualquer universidade nos EUA, as disciplinas que envolvem a captação de recursos são as mais oferecidas e exigidas para se conseguir o canudo. De fato, se você tem este conhecimento bem avançado, consegue trabalhar para qualquer ONG, das ambientais até direitos humanos. Ou seja, mais oportunidades de trabalho. Além disso, os salários são mais competitivos. Este cenário se aplica também, de uma forma geral, dentro do Terceiro Setor no Brasil.
Uma boa gestão de pessoas que desenvolva competências e estimule os profissionais a darem o seu melhor e entregarem grandes resultados nas ONGs segue os mesmos princípios já consagrados de gestão de pessoas no setor privado. Dar maior autonomia e tranquilidade aos colaboradores no processo de tomada de decisão (decision-making), oferecer treinamento e capacitação focada, trabalhar com base em metas e resultados, oferecendo compensação adequada a cada objetivo alcançado, se preocupar com o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional do trabalhador e oferecer suporte para que ele tenha tranquilidade para desenvolver o seu trabalho são todos aspectos muito importantes. E claro, neste momento de quase pós-pandemia, o trabalho híbrido, isto é, aquele que mistura o formato presencial com o home office, é uma alternativa que as ONGs deveriam dar caso a atividade profissional – captação de recursos, marketing, comunicação, advocacy, financeiro e administração – assim a permita.
Alta rotatividade é entrave
As ONGs ainda possuem um problema, talvez estrutural, de alta rotatividade e pouca estabilidade nas funções. Isso se deve basicamente à questão da captação de recursos. Entidades maiores e mais consolidadas possuem um fluxo de arrecadação de recursos mais estável, o que lhes permite planejar a longo prazo e assim contratar equipes que podem crescer junto com a organização e construir uma carreira. Boa parte das ONGs, em especial as menores, trabalham com base em projetos com prazo definido, e montam as equipes por projeto. Isto não é necessariamente ruim, mas se sua organização só atua com projetos pontuais, ou depende de apenas uma ou poucas fontes de financiamento, é um sinal de alerta. Por isso enfatizo que o time de captação é estratégico para a entidade, pois sem recurso nada acontece. Com efeito, como já disse em um artigo anterior, é importante sempre ter em mente os três pilares da administração eficiente de uma empresa do Terceiro Setor: (i) missão, visão e valores (MVV) claros, (ii) programa e advocacy alinhados com a MVV e (iii) captação de recursos profissional.
Em outras palavras, para uma administração eficiente de qualquer empresa do Terceiro Setor, perguntas-chave, baseadas na minha experiência no exterior e em nosso país, deveriam ser feitas:
- MVV é claro?
- Ações do departamento de programa e/ou de advocacy estão cumprindo com a Missão (quem sou), Visão (onde quero chegar) e Valores (como quero chegar lá) da ONG?
- Estrutura de captação de recursos é profissional (tem recursos para investir, gosta de inovar, gosta de se arriscar com base em uma estratégia e o staff tem uma remuneração competitiva)?
- Departamento de programa e/ou de advocacy atrai também recursos financeiros?
Mas, como disse lá no começo, a evolução do setor nestas últimas décadas é visível e só vai continuar. A importância do Terceiro Setor como algo complementar e transversal aos setores público e privado está cada vez mais clara e, com boa capacitação profissional e gestão de pessoal, as ONGs poderão contribuir cada vez mais na construção de uma sociedade mais justa e com oportunidades para todos.
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Sobre o autor: Edmond Sakai é diretor regional da Sede Mundial da ONG internacional médica Operation Smile. É advogado e professor universitário. É mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo e mestre em Administração de ONGs pela Washington University in St. Louis, EUA. Foi professor de Direito Internacional na UNESP, professor de Gestão do Terceiro Setor na FGV-SP e Representante da Junior Chamber International na ONU. Recebeu Voto de Júbilo da Câmara Municipal de São Paulo.