Como o apadrinhamento afetivo pode mudar a vida de uma criança
Para crianças e adolescentes que vivem em abrigos, um padrinho pode representar uma figura de afeto fundamental para sua formação humana e para desenvolvimento da capacidade de construir vínculos no futuro
Por: Mariana Lima
“Ser um padrinho significa abrir um espaço na sua vida para receber uma nova pessoa. É quase como um novo membro na sua família”. É desta forma que o jornalista e freelancer Márcio Oyama define o apadrinhamento afetivo.
Antes de se tornar padrinho de um jovem em situação de acolhimento, o jornalista era voluntário em um abrigo. A instituição era parceira do Instituto Fazendo História (IFH), que promove um programa de apadrinhamento afetivo de crianças e adolescentes que vivem em instituições de acolhimento. Márcio foi motivado por colegas a participar.
“Eu cheguei na palestra com uma ideia do apadrinhamento. Já pensava na criança que iria apadrinhar, o que iria fazer e como. E o Instituto foi fazendo um trabalho para desconstruir essa visão, pois eu tinha uma ideia de que era como um projeto social”.
Márcio é padrinho de Jhow, 20, há 3 anos. Jhow cresceu em casas de acolhimento e tem paralisia cerebral. Durante o encontro lúdico, etapa em que todos os padrinhos e crianças se encontram, os dois tiveram uma conexão muito forte.
“O apadrinhamento traz para eles um porto seguro. Elas conseguem se envolver afetivamente com outras pessoas, porque aquela em específico não as abandonou”
“Eu sou péssimo em brincadeiras com crianças, a única coisa que sei fazer é desenhar. Tinha uma estação de desenho e o Jhow era o único ali. Comecei a desenhar com ele. Tive uma afeição instantânea por ele, e não o deixei para ir interagir com outras crianças”.
Jhow enfrentava problemas de bullying no abrigo em que estava e, com o auxílio do padrinho e da assistente social, mudou-se para o abrigo em que Márcio trabalhava. Jhow tinha então 17 anos, e ao completar 18 iniciou um novo processo de mudança.
“Encontramos um abrigo especializado em pessoas com paralisia e em situação de vulnerabilidade social. Às vezes, sinto que sou padrinho há muito tempo, porque já acompanhei ele em tantos momentos, por tantas mudanças. Ser padrinho exige um comprometimento total”.
No início, a aproximação entre eles era mediada pelo IFH. “A equipe técnica sempre apoiou, principalmente no começo, quando é mais delicado e não sabemos como agir”. Com a relação solidificada, as conversas entre eles ficaram mais profundas e eles passaram a conhecer os limites um do outro.
“Hoje estamos em um patamar de intimidade muito grande. Temos brigas e problemas porque nós dois somos pessoas difíceis. O Jhow é um rapaz doce e carinhoso, mas enfrenta problemas de raiva contida em consequência das rupturas”.
Ao se tornar padrinho ou madrinha é importante não assumir uma postura de pai ou mãe. O padrinho está mais próximo de um “amigo adulto”.
“Eu assumia muito esse papel de tomar para mim todas as responsabilidades dele. Mas não é assim, existe toda uma rede de apoio ao redor dele e tive que aprender a dividir isso porque não dou conta de todas as lacunas afetivas dele”.
“A criança quer afeto, não palavras. O padrinho tem que entender muito bem seu papel”
Jhow convive com a família e os amigos de Márcio, sendo mais próximo dos pais e do marido de Márcio. “É importante para ele sentir que faz parte da história de alguém, ter um sentimento de pertencimento. Ele teve muitas rupturas na vida”.
Márcio acompanhou outras crianças no abrigo em que trabalhou e reconhece o impacto do apadrinhamento na vida delas.
“Teve uma criança que era violenta, tinha um péssimo comportamento, não conseguia conviver em grupo, e quando ela ganhou um padrinho a mudança foi fantástica. Parecia outra criança. Os problemas ainda existiam, mas ter aquela figura de afeto significou muito para ela”.
O Instituto Fazendo História realizou uma edição de apadrinhamento especial para crianças com deficiência e duas novas madrinhas se juntaram a Márcio.
Vendo os três jovens e conversando com as madrinhas, Márcio percebe como as mudanças observadas neles podem ser relativas.
“As mudanças no Jhow acontecem mais lentamente do que em outras crianças. Para mim, hoje ele está mais calmo e seguro. Eu vejo algo que alguém de fora pode não ver. Essas duas madrinhas podem ver coisas específicas em seus afilhados também”.
Márcio mantém uma conta no Instagram em que relata os momentos com Jhow, cada conquista e aprendizado, e até mesmo os problemas. Ele espera incentivar mais pessoas a apadrinharem crianças e adolescentes em situação de acolhimento.
“Para ser padrinho você não precisa estar preparado, mas sim disponível para dar o suporte emocional e ser uma figura afetiva para aquela criança ou adolescente”.
Vamos fazer uma história?
Márcio participou da 2ª edição do programa de apadrinhamento afetivo do Instituto Fazendo História (IFH) e, durante a formação, a equipe do instituto não abordava um apadrinhamento específico para crianças com deficiência.
“Eu estava preparado para não me apegar, estar aberto para todas as crianças, porque não é esperado que a conexão aconteça instantaneamente. Mas é claro que a equipe do projeto fica atenta a isso, para as outras etapas”.
Depois do primeiro encontro entre futuros padrinhos e afilhados, a equipe técnica do programa começa a fazer os pareamentos entre candidatos a padrinhos e as crianças e adolescentes. Ambas as parte são consultadas, e a convivência é iniciada aos poucos.
No Fazendo História, o processo de formação do padrinho é longo e minucioso. São realizados 6 encontros, após uma peneira nas inscrições e durante a palestra.
A instituição abre o processo para formação de padrinhos uma vez ao ano, e a formação pode durar até 6 meses.
“Esse processo é longo justamente para evitar o rompimento de outro vínculo para essa criança/adolescente. As etapas colaboram para uma autoavaliação da pessoa, para ela saber se é capaz de criar um vínculo e permanecer com aquele jovem”, esclarece Virginia Toledo, responsável pelo desenvolvimento institucional do Fazendo História.
A coordenadora do programa de apadrinhamento afetivo, Heloísa de Souza, complementa: “Não é um trabalho qualquer, é um vínculo que deve permanecer. A pessoa tem que se permitir envolver por essa criança/adolescente. Estar com o outro e deixá-lo entrar na sua vida”.
Um filtro importante aplicado pela equipe técnica é identificar candidatos ao apadrinhamento que buscam, na verdade, a adoção e querem utilizar o programa como um teste drive.
“Isso é muito ruim, porque o programa quer proporcionar uma relação duradoura, um vínculo afetivo para esses jovens. A pessoa entra com esse objetivo e abandona esse jovem que está contando com ela”, diz Virginia.
O apadrinhamento não é para todas as crianças em situação de acolhimento, mas para aquelas que estão na faixa em que a adoção se torna mais difícil, geralmente entre os 10 e 17 anos.
O objetivo do programa é oferecer a essa criança um adulto de referência fora do sistema de acolhimento, já que elas muitas vezes não contam com apoio da família de origem ou extensa (tios e avós, por exemplo).
“Esse jovem vai ter alguém com quem poderá conversar, sair, ir ao cinema, acompanhar em momentos bons ou difíceis. Uma pessoa que vai estar ali só para ela. É muito importante ter uma figura como essa para a formação deles”, explica Heloísa.
Na instituição, as crianças e os adolescentes também são preparados para o apadrinhamento, com atividades lúdicas, como construir o corpo do padrinho ideal, ajudando a desmitificar a atuação do programa.
“O apadrinhamento traz para eles um porto seguro. Elas conseguem se envolver afetivamente com outras pessoas, porque aquela em específico não as abandonou”, conta Heloísa.
As relações são construídas para se manterem após o período de acolhimento dos jovens. No instituto, ocorreu o caso de um rapaz que ao sair do acolhimento foi morar com a madrinha. Apenas dois casos de adoção foram realizados através do apadrinhamento iniciado pela ação do IFH.
“Nós separamos bem isso: apadrinhamento não é adoção. Mas pode acontecer se for um desejo de ambas as partes e se fizer sentido”, comenta Heloísa.
Virginia completa com um ponto pouco abordado: “Às vezes, a criança não quer ser adotada, ela pode querer voltar para a família de origem ou viver sozinha. Nós que somos de fora temos essa visão de que todas querem, mas não é bem assim”.
Para a psicóloga da instituição Aconchego – Grupo de Apoio à Convivência Familiar e Comunitária –, Maria da Penha, as crianças possuem desejos simples.
“Às vezes, a criança quer um miojo, não uma lasanha. É o afeto, o cuidado que ela busca. O padrinho atua como referência familiar, e pode oferecer essa vivência de família que a criança já perdeu”.
Ela ressalta que as pessoas ao buscarem o apadrinhamento podem ter uma visão de que vão suprir todas as necessidades da criança ou do adolescente apadrinhado. Mas não é bem assim. O mais importante na atuação do padrinho é oferecer afeto e apoio para a criança. “A criança quer afeto, não palavras. O padrinho tem que entender muito bem seu papel”.
Para saber mais sobre o programa de apadrinhamento do IFH, acesse: https://www.fazendohistoria.org.br/apadrinhamento-afetivo
*
Esta é a 3ª reportagem de uma série sobre crianças em situação de acolhimento e adoção.
Para ler a primeira reportagem, acesse: Adoção no Brasil: A busca por crianças que não existem
Para ler a segunda reportagem, acesse: 47 mil crianças no Brasil vivem em instituições de acolhimento
Márcio Oyama
19/07/2019 @ 12:51
Olá, boa tarde. Foi um grande prazer participar da reportagem e contar minha história com o Jhow. Obrigado pela oportunidade! Só gostaria de fazer uma breve correção: eu não trabalhava na área de comunicação do abrigo (nem existia isso), era apenas um voluntário. E como voluntário fiquei sabendo do programa do Instituto Fazendo História. Acho importante destacar isso porque, até onde eu sei, funcionários das casas parceiras do IFH não podem participar do apadrinhamento. Grande abraço!
Redação
22/07/2019 @ 12:37
Boa tarde, Márcio!
Muito obrigada! Vamos fazer as correções.
Um abraço.
Adoção Tardia: quando não se define idade para amar
09/12/2019 @ 15:48
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Jaqueline Valentim
11/11/2020 @ 19:19
Ola. Alguém pode me passar informações sobre apadrinhamento afetivo na Paraíba??? Meu e-mail é [email protected]. agradeço demais.